sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Alma Boa de Setsuan


Na noite do ultimo dia 27 de Fevereiro tive o imenso prazer de apreciar a montagem de A Alma Boa de Setsuan, peça com o texto assinado por nada mais nada menos do que Bertold Brecht, talvez o maior dramaturgo alemão de todos os tempos e o maior difusor do chamado Teatro Épico, sendo que na peça em questão toda a concepção deste produto está fortemente calcada no excelente texto.

Para os não iniciados nestes conceitos, segue uma breve tabela, retirada do wikipedia, que pode ajudar os mais leigos a diferenciar uma forma de teatro dramático de uma forma de teatro épico:

Forma dramática de teatro
Forma épica de teatro
O palco corporifica uma açãoO palco relata a ação
Compromete o espectador na ação

e consome sua atividade
Transforma o espectador em observador

e desperta sua atividade
Possibilita sentimentosObriga o espectador a tomar decisões
Proporciona emoções, vivênciasProporciona conhecimentos
O espectador é transportado para dentro da açãoO espectador é contraposta a ela
Trabalha-se com a sugestãoTrabalha-se com argumentos
Se conservam as sensaçõesAs sensações levam a uma tomada de consciência
O homem se apresenta como algo conhecido previamenteO homem é objeto de investigação
O homem é imutávelO homem se transforma e transforma
A tensão em relação ao desenlace da peçaA tensão em relação ao andamento
Uma cena existe em função da seguinteCada cena existe por si mesma
Os acontecimentos decorrem linearmenteDecorrem em curvas
Natureza não dá saltos - Natura non facit saltusNatureza dá saltos - Facit saltus
O mundo tal como éO mundo tal como se transforma
O homem como deve serO que é imperativo que ele faça
Seus impulsosSeus motivos
O pensamento determina o serO ser social determina o pensamento
SentimentoRazão


Portanto, temos uma montagem que interroga os espectadores e não conclui sobre o texto, que nada mais é do que um objeto de reflexão interrogativa. E A Alma Boa de Setsuan nos presenteia com todos estes elementos.

O texto vai ao encontro de um assunto discutido neste blog algumas vezes: a inversão da moral. Neste vasto e complexo tema, há uma discussão de cunho filosófico que discute até onde o certo é realmente certo e o errado é realmente errado, quando muitas vezes ao fazermos aquilo que convencionalmente é considerado bom sofremos em demasia, sendo que quando fazemos aquilo que é considerado mal nos sentimos bem. Sendo assim fica a questão: o que é o certo e o errado? Discussões a parte, vamos falar um pouco da trama da peça.

Os deuses decidem visitar a miserável provincia de Setsuan em busca de um objetivo: encontrar uma única alma boa. A trindade reunida numa figura humana, cansada pela longa viagem, decide pedir abrigo para Wang, um vendedor de água, que de pronto sai por toda Setsuan em busca de um lar para os deuses. Entretanto, ninguém está disposto a abrigar estrangeiros, mesmo sabendo que são deuses, afinal eles representam um incômodo para as pessoas.

Ainda assim os deuses se apiedam de Wang por seus esforços. Acreditam, então, que eles nem precisaram procurar muito e já acharam a alma boa que tanto procuravam. Porém, ao verificar a caneca a qual o vendedor comercializava sua água, verificou que o fundo era falso. Logo os deuses se decepcionam. A desculpa de Wang é que naquela situação de extrema pobreza, era preciso improvisar para sobreviver.

Wang volta em busca de abrigo e a única que decide ajudar a abrigar os deuses é Shen Te, uma prostituta que decide dispensar o seu cliente – cujo dinheiro daria condições de pagar o aluguel, que venceria no dia posterior – por piedade ao ter que deixar um homem dormir na rua.

Novamente os deuses se animam. E verificam que aquela era a única alma boa de Setsuan. Então recompensam Setsuan com mil moedas de ouro, valor suficiente para Shen Te sair daquela vida. Eles se revelam como deuses e pedem para ela continuar a ser boa por toda a sua vida.

Shen Te e acaba por comprar uma tabacaria com todo o dinheiro que os deuses lhe entrega. Porém, neste nova etapa, Shen Te irá se deparar com um cenário que não conhecia até então. Com o comércio, surgem os oportunistas, os criminosos, a polícia, aqueles parentes que você nunca ouvia falar, os interesseiros, enfim, toda a escória da sociedade, menos os clientes, é claro. Logo vem a primeira questão: Shen Te irá conseguir manter a bondade a qual fez os olhos dos deuses brilharem quando a viram? Ou o meio acabará por corrompê-la?

De certa maneira, todas as personagens que se aproximam de Shen Te não possuem mal caracter. Apenas estão sobrevivendo de acordo com a sorte de vida a qual pertence a cada um, neste caso a sorte lhe insere dentro de um mundo miserável e cruel. Então esta é a justificativa para cada um agir da forma que lhe convir, afinal na selva, é cada um por si: portanto há um quê a mais de animalidade nesta peça ao ressaltar certos valores humanos quando surge a necessidade por sobrevivência.

 Neste caso a pergunta permance: Shen Te conseguirá passar ilesa por todos estes testes? Afinal, a cada instante uma nova decepção surge em seu mundo que lhe faz perder um pouco da ingenuidade e ganhar um pouco mais de desespero. Então, como uma alternativa freudiana para aliviar o inconsciente, Shen Te se transforma em Shui Ta – um primo distante, arrogante e insensível que aparece em Setsuan para tocar o seu negócio e para tomar decisões que Shen Te, em sua extrema bondade, não conseguiria.

Então Shen Te, que não consegue dizer não para ninguém, quando chega num estado extremo, foge e entra em cena Shui Ta, que entre outras coisas só saber dizer não. É ele que expulsa parentes distantes, que se aproveita de algumas situações para se favorecer, que negocia valores no negócio e que não se importa com ninguém a não ser consigo mesmo. Mas uma hora ele tem que ir embora, afinal Shen Te precisa voltar para o comércio, e quando isto acontece, novamente as pessoas vão até ela para conseguir alguns ganhos.

Numa destas ocasiões Shen Te conhece um homem miserável, um aviador que nunca pilotou um avião, que se encontra triste por não ter dinheiro para realizar o seu sonho. Shen Te, com seu coração bondoso, acaba por lhe dar um dinheiro que nem mesmo era dela – e que havia sido emprestado para ela investir em seu comércio. Logo ela descobrirá que o interesse do homem com ela era somente o dinheiro para conquistar o seu sonho, porém é tarde demais: Shen Te está grávida do aviador e sua situação é desesperadora.

Então surge a figura de Shui Ta para ficar durante um bom tempo, de uma maneira muito cruel, de modo que, sendo mal, ele consegue reerguer os rendimentos de "sua prima", emprega os pobres cidadãos de Setsuan com trabalho totalmente explorador, de modo que amplia os seus negócios.

Um dia, porém, um dos empregados ouve Shen Te chorando numa casa próxima ao local de trabalho. Assustado ele vai até o local mas só encontra Shui Ta. Então o emprego desconfia que ele esteja por sequestrar Shen Te e resolve chamar a polícia, que entrando no estabelecimento, nada encontra, o que deixa o funcionário confuso pois ele está certo que ela está naquele recinto. Até que eles encontram uma peça do vestuário de Shen Te nesta casa e a suspeita aumenta ainda mais.

Neste interim os deuses voltam a Setsuan e eles resolvem iniciar um julgamento que possa provar a inocência de Shui Ta. No final, assim que todos saem do tribunal e só ficam os deuses e Shui Ta, ele acaba tirando suas roupas e revelando que Shui Ta e Shen Te são as mesmas pessoas, e justifica que ela precisou fazer isto porque era dificil se manter boa num mundo de tantos desiguais. Transfere, inclusive, a consciência moral para os deuses ao se debaterem com o dilema "como ser bom em suas vidas quando as circustâncias criadas pela providência divina não são propícias para isto", ainda mais quando eles se recusam a interferir diretamente em nossas vidas para respeitar o livre arbítrio.

A peça simplesmente acaba e o narrador vem até em frente ao público dizer que, infelizmente, não havia resposta para estas questões, sendo que a responsabilidade de encontrar uma solução estava em nós mesmos, que éramos responsáveis por não tentar corromper uma alma boa quando nós a encontrássemos. E assim somos levados à uma reflexão em torno do texto, do tema "o bem e o mal", inversão de valores e afins. Como uma pessoa pode ser boa do inicio ao fim num mundo que, essencialmente, não é bom?

Percebam que Brecht nos propõe um argumento dialético para chegar à uma solução. De fato, a peça em nenhum momento esclarece exatamente o que é bom e o que é ruim numa sociedade em que os fins acabam por justificar os meios, onde os miseráveis encontram, ao seu modo, uma maneira de preservar a sua dignidade, nem que para isto seja preciso transgredir sem ser, necessariamente, do lado negro ou do lado branco da moral.

Se formos um pouco mais adiante poderemos argumentar que a moral ele é flexível para cada situação, desta forma não há uma moral correta ou um livro de ética universal, sendo que o mais provável é que cada um construa uma própria para aceitar a viver a vida como ela se apresentar para si. Neste contexto o conceito de bem ou mal é destruído e nada mais cabe em seu lugar.


Uma outra leitura é uma crítica contra o capitalismo, na medida em que Shui Ta assume o comando numa visão simplificada do sistema do capital, que é orientado a base de exploração e da riqueza do burgo a qualquer preço, onde o proletariado simplesmente serve aos interesses do lucro – sabemos que Brecht era marxista e próximo das técnicas de teatro da Rússia Soviética, socialista só para constar.

Também outra crítica que podemos observar é contra a religião, onde os deuses simplesmente esperam que sejamos bons sem nos dar condições para sermos desta maneira, sendo que o que nos resta é aquele velho dilema "é matar ou morrer". Desta maneira, não há razão para os deuses existirem, pois se eles não interferem por nós neste sentido, estamos sozinhos e devemos aprender a caminhar com as próprias pernas, uma vez que o conceito de livre arbítrio acaba por anular a importância da existência divina, em termos de onipotência e onipresença.

Enfim, o teatro épico de Brecht é fantástico e permite diversas linhas de raciocínio difusas. Com interpretações estupendas de Denise Fraga no papel principal – dispensa apresentações! A garota simplesmente não para por um segundo –, Ary França (perfeito e carismático, conversando normalmente com a plateia ao término do espetáculo!), Marcos Sesana, Claudia Melo, Jacqueline Obrigon, Virginia Buckowski, Joelson Medeiros, Fábio Herford (outro que tirou muitos risos da plateia), Maristela Chelala, Maurício Marques (fenomenal!) e João Bresser, A Alma de Boa Setsuan é um espetáculo que eu recomendo todas as vezes que ele for montado! Quando tiverem a oportunidade não percam por nada! Irresistivelmente delicioso!

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