quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Os Irmãos Karamázov



Como analisar ou interpretar aquilo que Freud chamou de "a maior obra da história" escrito pelo autor cujo Nietzche afirmou ser "o único psicólogo com que tenho algo a aprender" sendo justo e coerente com a grandiosidade do escrito sem ser demasiadamente excessivo em minhas palavras? Uma vez um professor do curso de Filosofia disse que é impossível analisar totalmente uma obra de expressão sem escrever um conteúdo maior do objeto que será analisado.

Este é o caso de "Os Irmãos Karamázov", do russo Fiódor Dostoiéski, cuja interpretação e análise total passariam facilmente das 1000 páginas que compõem o romance. Infelizmente esta missão não é minha justamente por não ser um estudioso da obra do escritor russo, sou apenas um grande admirador e em minha posição de apreciação fico fascinado a cada página que leio dos seus livros. Portanto irei apenas pincelar alguns pontos de destaque deste que, ao lado de "Guerra e Paz" de Tolstói, é o maior romance escrito em língua russa.

Todos os outros romances de Dostoiévski trazem diversos elementos de sua experiência pessoal, porém é praticamente consenso que "Os Irmãos Karamázov" é um romance autobiográfico em muitos pontos, a começar pelo desenvolvimento do pano de fundo em uma Rússia problemática, que demonstra o descontentamento do escritor ao salientar consequências morais de uma sociedade capitalista, cuja dignidade social é posta de lado e cada um preserva a si mesmo, dentro de suas possibilidades, um status de relevância perante a sociedade - traço este observado também em outros romances do autor. Posteriormente temos um paralelo entre as personagens e pessoas que Dostoiéski conheceu durante a vida, como é o caso do irmão mais velho, Dmítri Fiodórovitch Karamazov, cujo autor conheceu caso semelhante durante a sua estadia na prisão.

De fato, em "Os Irmãos Karamázov" Dostoiévski insere uma leva de situações e personagens reais e lhes imergem em seu próprio universo fictício e existencial, o que pode ser visto como uma realidade paralela - quando não mesmo realidade possível - que o autor oferece para os seus conhecidos. Outros vislumbram este como um romance síntese (o ultimo escrito pelo Russo) que repassa praticamente toda a sua obra, o que pode ser considerado verdadeiro, visto que diversas linhas de pensamento podem ser encontradas em outros dos seus livros.

A trama central gira em torno de Fiódor Karamázov, uma pessoa mesquinha e egoísta, dada a libertinagem, cuja vida é inteiramente voltada para si mesmo, num egocentrismo exacerbado no universo de Dostoiéski. Pai de três filhos e de um suposto bastardo, esta personagem enfrenta diversos problemas de relacionamento e aqui temos uma família extremamente desestruturada e desunida, cujo ponto de equilíbrio - que deveria ser o pai - se desmorona em si mesmo. Seus filhos nutrem sentimentos negativos quanto ao pai, há diversas batalhas entre eles e em determinado ponto o patriarca é assassinado, sendo que a culpa recai sobre Dmitri Karamázov, o mais velhos dos irmãos, devido ao seu comportamento explosivo e seu ódio declarado publicamente pelo pai.

Desde a acusação de parricídio nós sabemos que Dmitri é inocente, porém todos os fatos evidenciam para que ele seja apontado como o principal suspeito, de tal maneira que ele mesmo afirma, em julgamento, que se condenaria se estivesse do outro lado do tribunal: "Quem poderia ter cometido o assassinato, senão eu?". Então basicamente o livro se divide em três partes: vida dos Karamázov, assassinato de Fiódor e julgamento de Dmitri.

Porém o livro traz infinitas reflexões acerca de diversos temas diferentes, como a religiosidade, o sistema penal, a persuasão e a moral, sendo que os personagens secundários avivam ainda mais a história. Como já dito, sem o pano de fundo e sem os coadjuvantes, Dostoiévski não ganharia tanta projeção na literatura, pois são nos pormenores e nas tramas paralelas que temos uma leitura mais aprofundada sobre as ideias do escritor russo.

Para começar, temos os três irmãos Karamázov: Dmitri é o mais velho - libertino como o pai, dado a gastar demais, brigão, endividado, apresentado como um brutamonte que age compulsivamente, até mesmo um pouco abobado e atrapalhado, porém digno e sincero, dotado de boa índole e um tanto quanto confuso quanto a sua religiosidade. Um híbrido entre o bem e mal, pois aqui temos uma boa pessoa cometendo atos negativos perante os demais.

Temos Ivan Karamázov, o irmão do meio, pessoa extremamente culta, estudiosa, irônica e séria. A contrapartida de Ivan na realidade é o próprio Dostoiéski, a qual encontramos uma grande identificação, principalmente no conflito religioso que perpetuou sua mente durante muitos anos. Ivan é descrente na divindade e criador de um artigo, chamado "O Grande Inquisidor", que por si mesmo já poderia ser objeto de um estudo profundo (a qual não é o caso deste artigo). Porém a sua descrença é colocada em xeque diversas vezes e ele mesmo enfrenta uma grande angústia ao confrontar suas próprias ideias. Um de seus pensamentos foi responsável pelo slogan virtual de "Os Irmãos Karamázov": "Se Deus não existe, então tudo é permitido" (falaremos um pouco sobre isto mais abaixo). Há muitos que consideram este o personagem mais importante do livro. Não sei precisar se realmente ele seja, porém garanto que é aquele que gera mais conteúdo de reflexão, tornando assim o meu predileto.

Por fim, temos Aliéksiei Karamázov, o irmão caçula. Este é inocente, justo ao extremo, crente em demasia na doutrina cristã (inclusive iniciado em atividades monásticas, cuja carreira seria seguida se não fosse a ordem de um monge a qual era mentor em sua vida). Aliéksiei é bondoso e ponderado, logo atua sempre como moderador na família Karamázov, demonstrando compaixão por todos os seus membros, inclusive por seu pai - que devido a este amor acaba sempre por elogiar o filho mais novo. Dostoiéski, no princípio do livro, diz que este é o seu personagem predileto, talvez por representar a esperança de um mundo melhor.

O interessante é que cada irmão representa um extremo: o bom, o médio e o ruim. O crente, o agnóstico e o ateu. Isto é munição mais do que o suficiente para Dostoiéski explorar com maestria todas as suas ideias (motivo pela qual o romance termina com 1000 páginas e de certa maneira inacabado, visto que Dostoiéski planejava escrever uma outra parte, ou mesmo contar uma outra história que envolvesse a família novamente).

Ainda temos Smerdiakov, suposto filho não assumido de Fiódor Karamázov, que atua como criado da casa e através de Ivan passa a assumir uma visão niilista das coisas, onde a desconstrução é o grande caminho a ser percorrido. De fato, considera Ivan como o seu grande mestre e posteriormente sabemos que é o próprio quem comete o assassinato de Fiódor Karamázov, inspirado pelas ideias de seu suposto irmão. Aqui temos um grande paralelo com a vida de Dostoiéski: quando jovem, o autor também teve o seu pai assassinado por criados, o que na época desencadeou uma crise de epilepsia tão profunda, que fez com que o russo abandonasse a vida militar para dedicar-se totalmente a vida literária.

Entre as ideias que inspiraram Smerdiakov está no texto de Ivan Karamázov chamado "O Grande Inquisidor" (que no livro é tratado como um capítulo a parte), onde se conclui que se Deus não existe, então tudo é permitido. Basicamente uma vez que Deus e, consequentemente, a imortalidade deixa de existir, então o homem está livre para fazer tudo o que bem entender sem se sentir culpado, mesmo cometendo crimes, visto que muitas vezes o ato acaba por ser a execução mais lógica em determinadas situações. Pela descrença de Smerdiakov num ser divino, ela confessa a Ivan que foi seu artigo que lhe levou a cometer este assassinato. Ivan começa a sentir extremamente culpado por ter escrito tal artigo, a ponto de contrair uma doença febril que lhe leva a delirar de forma progressiva até o final do romance.

Temos aqui uma destruição niilista de valores e morais que posteriormente influenciaria Nietzche em muito dos seus textos. Outra coisa que não pode ser negada é a influência existencialista para os pensadores que surgiram depois, visto que Dostoíeski é visto como um dos fundadores do existencialismo e do expressionismo. As questões do absurdo, do ser arremessado na vida, nas escolhas que somos obrigados a fazer, o fardo pesado do livre arbitrio, são tópicos para serem discutidos para o resto da humanidade.

Ou seja, temos em "Os Irmãos Karamázov" um livro infinito, que não se esgota dentro de si, portanto leitura obrigatória para quem se diz amante da literatura, da filosofia ou da psicologia, pois além de contribuir com uma boa dose em seu intelecto, também lhe ajudará a compreender outros pensadores, devido a inegável influência que Dostoiéski exerceu no pensamento posterior a sua existência.

Os Irmãos Karamázov
Fiódor Dostoiéski
Editora 34
1ª edição - 2008 - 1000 páginas

2 comentários:

  1. Comprei o livro pela Editora 34, dois volumes, lindos...
    Estou me preparando para ler esta obra formidável.
    Com certeza irei me surpreender outra vez com Dostoiéski (a primeira com Crime e Castigo).
    Bela resenha.

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