Caim

Mais um livro do nobel português, mais um clássico para a estante. Se no livro A Viagem do Elefante eu havia comentado que José Saramago nunca havia sido tão irônico quanto ao cristianismo é por que este ainda não havia sido publicado. Temos aqui um Saramago extremamente polêmico e com a lingua bem afiada quando a questão é religião.

Do ponto de vista da originalidade, este não é o seu livro com a melhor trama. Porém os pontos que ele destaca em relação ao antigo testamento são dignos de reflexão e nota - ainda que sejam mencionados pelo autor com a conhecida irônia que lhe é tanto peculiar.

Quem é Caim? Caim é aquele personagem clássico que assassinou o seu irmão Abel por inveja, uma vez que Deus recebeu com maior satisfação a oferenda deste. Deus repreende Caim, que expressa temer retaliação do povo pelo assassinato cometido, porém Deus o coloca uma marca na testa que proibe qualquer um de atingi-lo.

Saramago inicia seu livro por Adão e Eva, mas logo chega para explorar o episódio da contenda entre os irmãos. Se Deus é tão justo assim, por que ele opta pela oferta de Abel? Se Caim é o assassino, por que favorecer o agressor ao dar-lhe uma marca onde ninguém poderia tocá-lo?

No livro, ao aperceber-se da ausência de Abel, Deus pede esclarecimentos a Caim por ter cometido tão grave crime. Caim culpa o próprio ser divino por ter se encantado com a oferta de seu irmão e ter esnobado a sua - o que, inclusive, gerou uma inimizade que anteriormente nem existia. Deus confessa que a sua preferência realmente havia sido um erro e compartilha do crime com Caim. Para amenizar a culpa deste, coloca o seu sinal na testa de Caim, a indicação de que é o seu protegido.

No decorrer da história, Caim viaja no tempo para observar outros episódios igualmente polêmicos no antigo testamento. Caim representa o próprio ponto de vista de Saramago, que não se conforma com a dualidade e incoerência de certas passagens em seu ponto de vista.

Numa das ocasiões, Abraão está para sacrificar o seu filho Isaac, porém bem no momento derradeiro, Caim impede que isto aconteça e reprova em tom violento a atitude do homem num diálogo ácido: "Você está louco? Ia matar esta criança?", "Sim, mas era para provar a minha fidelidade ao meu senhor", "E ele pediu a vida de seu filho?", "Sim", "E mesmo assim você estava disposto a sacrificar o teu único filho para saciar a vontade deste louco?", "Sim, mas foi a vontade de Deus que permitiu que continue vivo", "Não foi nada! Se eu não tivesse aparecido ele estaria morto!", "Mas Deus enviarei os seus anjos". Então, durante a cena, um anjo aparece e pede desculpas pelo atraso!

Num episódio de Sodoma e Gomorra, Deus promete que se houver dez inocentes, ele não mataria a ninguém. Porém Sodoma e Gomorra foi aniquilada pelos seus anjos e alguém menciona para Caim "Está vendo como Deus é justo? Todos estão mortos! Ou seja, não havia nem mesmo dez inocentes!". Então Caim questiona: "E as crianças?"

Caim é um missionário que culpa a Deus por todos os males do universo. Que não suporta mais uma única visão de violência proveniente dos céus - o caso do livro de Jó é um dos que suscinta o ódio pelo ser divino em Caim - e que acaba por decidir o destino da humanidade ao manipular os acontecimentos da Arca de Noé.

Neste tom o livro caminha até o seu fim, com diversas alfinetadas e acidez. Para os ateus este livro é um deleite, para aqueles que simplesmente não se importam aqui temos um livro divertido e com muito humor. Já para os religiosos, se trata de uma ofensa brusca e certamente ficarão incomodados. A curiosidade é que nesta coleção, a capa é preta em contraste com as capas brancas que estamparam todos os seus livros anteriores publicados pela Companhia das Letras.

Uma entrevista com o português a respeito do livro pode ser lida clicando aqui.

Caim
Jose Saramago
Companhia das Letras
1ª Edição - 2009 - 200 páginas