sábado, 27 de outubro de 2007

Silêncio

Caros amigos. Acompanhemos um pouco a vida de um pobre diabo chamado XTM20143 - apenas X para os íntimos, esposo da formosa XTF20191 e pai de três filhos, a saber, o primogênito XTM20401, a filha do meio XTF20482 e o caçula XTM20543, que acabara de completar três anos de idade. Os XTs eram uma família de classe média-média-baixa-alta, conforme classificação atingida através do cálculo de um supercomputador chamado NeverFree, que controlava as transações financeiras, nível de agressividade, desempenho acadêmico, desempenho profissional, sites visitados, tempo de atividade e ociosidade, canais de televisão, e outros indicadores em cada membro de cada família de um planeta conhecido agora como Tera, tudo isto visando a segurança e a integridade dos cidadãos.

Como a classificação social era por família, não bastava apenas ter bons níveis em cada um dos itens calculados pelo NeverFree, mas seus pais, irmãos e filhos também deveriam se enquadrar nos padrões. Esta era a única possibilidade de aumentar ou manter o nível social.

Quando o NeverFree detectava uma queda na classificação social de uma determinada família, automaticamente ele avisava à todos os meios de comunicação possíveis, que interrompiam a sua programação normal para dar o boletim ao vivo para todos os espectadores.

"Caros cidadãos de Tera, é com pesar e muita tristeza que anunciamos o downgrade da família YY para uma casta mais baixa da sociedade, visto que o filho mais velho da família tirou uma nota abaixo de oito na disciplina 'Aprender à obedecer' no curso de formação essencial para crianças de até sete anos de idade(...)". Fotos de todos os membros desta família eram mostradas na internet e pela televisão.

X e sua família eram habitantes da cidade-estado chamada Eurótika, ao leste da capital Corruptéria - famosa por ser a maior produtora de porcos em toda a história - e foi ali que nasceram e se criaram, e ali morrerão, visto que, por decreto, nenhum cidadão podia firmar residência fora de sua cidade-estado natal.

Era segunda-feira, 06h30min. O iPod FullHD 640Gb - um modelo já ultrapassado comprado em um leilão de coisas usadas - projetava luzes e disparava efeitos sonoros programados para acordar X. A programação era feita via BlueTooth 3.5 pela empresa que contratara X, a gigantesca e exuberante Exploring People S/A, que recentemente havia sido contratado, depois de participar por 60 dias em um desgastante processo seletivo e concorrido com quase 20.000 pessoas, para a vaga de programador de software com um bom salário de 500 créditos. Tirando os 350 créditos de impostos que eram pagos à capital Corruptéria ainda lhe sobrava 150 créditos!

X, realmente, era um homem de sorte. Ele não tinha formação nenhuma. Era apenas um mísero programador de software, se falava umas quatro línguas fluentemente era muito, tinha apenas dois diplomas universitários e, ainda assim, estava empregado.

Passado cinco minutos, X finalmente se levantou. Ele sabia que tinha apenas mais dez minutos para se aprontar, mais dez minutos para tomar o seu café-da-manhã e trinta e cinco minutos para assistir os programas que eram considerados imperdíveis na televisão pela manhã. Depois disto, deveria pegar a sua moto e enfrentar o congestionamento, referente ao excesso de motocicletas em todo o mundo, até chegar ao seu local de trabalho.

Assim que entrou na cozinha para tomar o seu café-da-manhã, uma lata de refrigerante de cola, uma barra de chocolate e um saco de batatas-frita, deu de cara com a sua filha do meio, que imediatamente ofereceu o seu handheld e disse:

"E aí, pai? Esqueceu de assinar a autorização para a excursão da semana que vem que teremos lá na escola?"

Ele havia esquecido. Pegou o HandHeld e leu o bilhete eletrônico.

"Caro senhor XTM20143. Você autoriza a sua filha XTF20482 à maravilhosa excursão que faremos à Googlelândia na próxima quinta-feira? Lembramos que caso o senhor autorize estará acumulando pontos para o próximo balanço a ser calculado pelo NeverFree."

Na tela havia três botões: sim, não e leia mais.

Automaticamente X clicou em sim. Na próxima tela, havia instruções para inserir o seu CardId e assinar digitalmente o documento de autorização. Logo abaixo, as formas de pagamento: 55 Créditos, parceladas em até 480 vezes com taxas de 1.99% ao mês. X selecionou a opção de parcelamento e confirmou a transação financeira.

"Pronto, já autorizei."

"Obrigada, pai."

A menina saiu da cozinha, nem feliz, nem triste, como era praticamente todos os seres daquela época - com a exceção dos porcos, que estavam sempre sorrindo -, pegou o seu material escolar e saiu pela porta da sala sem dizer mais nada.

Após finalizar o seu café-da-manhã, X se dirigiu até a sala, sentou-se em sua confortável poltrona flutuante, que além de ter um sensor térmico que regulava a temperatura da poltrona conforme a temperatura do corpo, e de se adequar ao peso de quem os estivesse utilizando, ainda tinha uma funcionalidade que, conforme o nível de tensão detectado em cada usuário, automaticamente, realizava uma massagem terapêutica.

Enfim, X pegou o controle remoto, que estava na mesa de centro junto com algumas revistas de caráter duvidoso, como as semanais Olhe e Período, e as mensais Super Empolgante e Galilei – que falavam a mesma coisa com palavras diferentes -, e ligou sua televisão de cento e três polegadas de LCD, que não deixava nenhum detalhe passar despercebido, além de emanar uma forte sensação de realidade.

Naquele tempo só havia uma emissora para assistir: a poderosa GLB, que havia canalizado toda a audiência, não dando a menor chance para os concorrentes, os quais foram adquiridos por preço de banana pela GLB. Os seus principais acionistas não tinham a sua identidade revelada, sabia se apenas que eles eram moradores de Corruptéria.

Um festival de imagens eram projetadas no televisor: propagandas de handhelds, propagandas de novos televisores LCD ainda maiores, propagandas de chocolate, propagandas de câmeras digitais de 235 MegaPixels, e uma tentadora propaganda de um handheld que estava sendo vendido por apenas 100 créditos parcelados em até 120 vezes com juros de 0.99% ao mês. X pensou consigo mesmo que já era ora de trocar o seu hendheld, que já contava com quase 90 dias, por um novo. Com o controle remoto do televisor em mãos, ele apertou a tecla comprar. Uma pequena tela abriu-se no canto inferior direito solicitando as formas de pagamento. X novamente inseriu o seu CardId no controle remoto e optou pela opção parcelada. Após a confirmação surgiu uma mensagem dizendo que o celular seria entregue em até quinze minutos em sua residência.

Após a seqüência de quase doze minutos de propagandas, finalmente começou o programa: era o programa AlfaTV, um dos diversos da grade especialistas em auto-ajuda. Não havia apresentadores, apenas paisagens ao fundo e uma voz masculina e outra feminina se intercalando em dizeres como: “Confie sempre nos outros”, “Se alguém errou contigo, perdoe este alguém e purifique a sua alma”, “Se alguém acertar a sua face direita ofereça-lhe a esquerda”, “Na hipótese de um atentado violento, não reaja”, “Obedeça aos seus pais”, “Confie nos políticos, eles trabalham para você”, “Nunca chegue atrasado ao seu ambiente de trabalho”, “Ame a sua vida”, etc.

Após três minutos de programa, as propagandas voltaram. Eram exatamente as mesmas. Neste ínterim, chegou o handheld na casa de X. Ele apenas inseriu o seu CardId no aparelho que se configurou automaticamente. Estava satisfeito com sua nova aquisição.

Enfim, o sistema sonoro da sala onde X estava emitiu, com sua voz robótica, que estava na hora de X se dirigir ao seu local de trabalho.

X saiu de seu apartamento e se dirigiu aos elevadores. Neste tempo, todos os apartamentos de Tera (não haviam casas) eram de uma empresa privada chamada Beyond Doors S/A, cuja estratégia de marketing levou, praticamente, o mundo inteiro à acreditar que movimentos que defendiam à distribuição de terras abandonadas entre a população, como o MST, eram levantes de vândalos e selvagens que não sabiam dialogar e que só sabiam utilizar da força para fazer alguma coisa. Além disto, os acionistas da Beyond Doors S/A fizeram um acordo inédito com todas as cidades-estados de Tera e compraram todas as terras e propriedades públicas e fizeram uma nova campanha, sugerindo à entrada em uma era onde ninguém ficaria desabrigado, além de morar num local altamente sofisticado. Haviam os mais diversos planos de locação, e mesmo aqueles que não tinham renda alguma poderiam morar nestas residências, pagando de uma outra maneira, por exemplo, trabalhando em uma das empresas dos acionistas.

As construções da Beyond Doors S/A eram prédios padrões, com cerca de 115 andares, com 25 apartamentos por andar. Em cada entrada, em cada Hall, dentro do elevador, no estacionamento, haviam telas de LCD passando a programação da TV, geralmente com propagandas de produtos, além dos prédios serem equipados com piscinas, parques de diversão, academias de musculação, etc.

Com o tempo, aqueles cidadãos que tinham alguma propriedade privada acabaram vendendo-as para a Beyond Doors S/A justamente para irem morar em um dos apartamentos desta empresa, pois no fim, não conseguiam resistir à sedução de morar num apartamento tão sofisticado.

Ao pegar a sua motocicleta, o computador de bordo da mesma já informou as condições climáticas do dia, assim como informou como estava o trânsito, calculou o melhor trajeto a ser percorrido e o tempo que iria demorar até chegar o seu destino. O computador de bordo pediu a confirmação se X desejava partir agora. Ele marcou sim e, automaticamente, a motocicleta começou a percorrer a rota, sem intromissão de X na direção - o chamado piloto automático.

Trânsito. Essa é a única palavra para definir a situação das ruas, avenidas e estradas naquele tempo. Uma pista de sentido duplo considerada de menor largura, tinha cerca de oito faixas para motocicletas: quatro em um sentido e quatro no outro. Grandes estradas chegavam a ter cerca de 15 faixas num único sentido, e ainda assim o trânsito era constante. Por isto mesmo é que os motociclistas daquele tempo utilizavam um capacete que transmitia imagens por dentro de seu visor, e sons por dentro do capacete. A programação era um misto de programas Zen e mais propagandas. Como o trajeto até os locais de trabalho eram demorados, mesmo que curtos, todos acabavam optando por assistir estes programas.

Cerca de 01h45m depois, X chegou ao seu local de trabalho, onde fez uma jornada de 10 horas de trabalho antes de voltar para seu apartamento. Creio não ser necessário descrever a rotina de um analista de sistemas, justamente por ser algo muito chato, alienado, e sem razão de ser o que é, e por isto iremos pular para a parte final de nossa história.

Após mais um dia de jornada, finalmente X retorna à seu apartamento e logo quando entra na sala tem uma surpresa: toda a sua família está reunida na sala.

Logo ele pensa que deve haver algum problema muito grave, pois há muito tempo não existiam motivos para a família se reunir. Antes mesmo de concluir o seu raciocínio, a esposa de X apontou para a televisão: ao fundo, foto de todos os membros de sua família. O âncora dizia:

"Na tarde de hoje XTF20482 foi pega em flagrante, em plena sala-de-aula na disciplina 'Como viver?', escrevendo uma carta com conteúdo sentimental para uma outra jovem ainda não identificada. A falta cometida é grave por infringir uma série de normas. Como procedimento já conhecido por todos, infelizmente somos obrigados a anunciar o downgrade da classificação social de todos os membros da família XY. Com isto eles perdem benefícios adquiridos e terão que se mudar de seu apartamento na cidade-estado de Eurótika e ir para as proximidades de PoorTown, além de ter o tamanho de seus televisores reduzidos em 3º polegadas cada um."

X, lentamente, desligou o televisor.

Silêncio. O nada absoluto. Uma estridente grito sem som. O vácuo insuportável.

Na sala não se ouvia nenhum som quando, enfim, a esposa de X resolveu quebrar a monotonia:

"Querido, você sabe o que deve fazer."

Naquela época, quando algo deste tipo acontecia, havia uma maneira de não ter a sua classificação social diminuída: eliminando o causador da infração.

X estava absorto demais. Sua filha não demonstrou nenhuma reação. Não se desculpou. Não questionou o por que de seus atos. Enfim, ela estava paralisada.

Foi quando X, finalmente, se movimentou. Foi até a escrivaninha ao lado do sofá, abriu a gaveta e retirou uma pistola à laser. Enfim, ele apontou a pistola para sua filha e disparou o gatilho. Subitamente, ela se desintegrou.

Depois de uns 2 minutos de silêncio total, contemplando o lugar onde estava a menina, que agora estava vazio, X resolveu falar para a sua esposa e seus dois outros filhos:

"XTF20482 era importante demais para nós. Certamente poderíamos viver em um local diferente deste, seria fácil de suportar. Poderíamos ter nossos mantimentos reduzidos, assim como nossa classificação social. Isto também seria fácil de suportar. Mas reduzir em 3º polegadas todos os televisores que temos... Isto realmente não dá!"

Então todos na sala sorriram, sentaram no sofá e ligaram o televisor novamente.

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