No texto Apologia de Sócrates da autoria de Platão, sabido por todos como o principal aprendiz, seguidor-apóstolo, de Sócrates, em parte devido à grande obra de sua filosofia e em parte por ser o principal documentador da filosofia de seu mestre, encontramos todos os ingredientes a qual reconhecemos num filósofo: atitude filosófica crítica, reflexão filosófica, indagação e, talvez, um elemento sem a qual não é possível ser filósofo: postura rígida para encarar todas as conseqüências provenientes de sua filosofia.
Não foi despropositalmente que eu coloquei o termo apóstolo no primeiro parágrafo introdutório. De certa forma Sócrates é endeusado por toda a filosofia posterior a sua existência, e ainda em vida pode colher votos de admiração por parte daqueles que conviveram consigo e que seguiram os seus ensinamentos, ainda que ele não tivesse uma escola e não se propunha a ensinar nada, a não ser promover a sua própria ignorância como única certeza, fato que o evidenciava como mais sábio, visto que como os outros não reconheciam a sua própria ignorância era correto afirmar que nada sabiam acerca de nada.
É através desta fórmula de saber que nada se sabe que Sócrates tenta explicitar a ignorância dos outros, principalmente daqueles que se julgam sábios em seu próprio tempo, e ao constatar a mesma, e observando que ainda que isto fique claro para ele os outros não admitem o veredicto, Sócrates vai percebendo que realmente ele é o mais sábio de todos os homens justamente por saber que os homens de seu tempo não sabem de nada – não conseguem sustentar os seus próprios argumentos. Ele também não conseguia formular uma opinião sustentável sobre algo, porém ele sabia uma coisa que ninguém sabia ao dizer “só sei que nada sei”.
Muito embora não tenha sido o criador da palavra filosofia e seus derivados, Sócrates, convém afirmar, é responsável por arquitetar a filosofia e o homem filósofo, ou aquele que busca uma iniciação filosófica. É ele que explicita o jargão que diz muito verdadeiramente que a filosofia não serve para nada. Em sua defesa, Sócrates afirma que os únicos que sabem das coisas são os deuses e ele entende que quando o oráculo de Delfos afirma que ele é o mais sábio dos homens, é incumbido de demonstrar para os homens que sua sabedoria não tem valor, conforme evidenciado no trecho abaixo:
“A verdade (...) quem sabe é apenas o deus, e ele quer dizer (...) que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem. (...) como se tivesse dito: ó homens, é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha admitido que a sua sabedoria não tenha valor algum.” PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: Os Pensadores; tradução Enrico Corvisieri. 1º ed. São Paulo : Nova Cultural, 2004. Pg.73 (Os Pensadores).
Claro está que a filosofia de Sócrates não visa recompensas, não visa fama ou algo que enriqueça o homem, mas apenas, única e exclusivamente, a incessante busca da verdade, que é a base de toda a filosofia.
Não obstante, Sócrates inaugura uma nova forma de filosofia, que se estende por todos os anos que seguem após a sua morte até os nossos dias: a interiorização do conhecimento dentro do próprio homem e em direção ao próprio homem. Sócrates está preocupado com a questão homem. Mais especificamente falando, Sócrates está preocupado com o conhecimento falso e sedutor que o homem adquire e promove entre eles.
Por isto mesmo Sócrates nos ensina mais uma lição que acaba se tornando a característica de um filósofo: a atitude filosófica.
Sócrates decide arcar com todas as conseqüências de sua filosofia de “desmascaramento”, de revelação de toda a ignorância, e promove a mesma em plena praça pública no centro de Atenas, vulgo polis, convidando pessoas, que ao longo do discurso se tornam rivais, para debates acerca de coisas simples, fazendo com que estas pessoas se percam dentro de si mesmas e que se sintam humilhadas perante a todo o público presente nestes círculos de discussões, fazendo transparecer a todos que um dito sábio, letrado e mestre na arte de discursar, era tão ignorante quanto um pobre artesão. E mais, para estes sábios, que acabavam numa discussão com Sócrates, ele deixava ainda mais claro que a única coisa que eles sabiam fazer era persuadir as pessoas, justamente por serem mestres de retórica, porém que o conhecimento dos mesmos não servia de nada.
Nestas discussões Sócrates buscava ainda um elemento característico da filosofia: a essência das coisas.
Ele sempre estava a perguntar pelo o quê, pelo o porquê e pelo o como das coisas, e não se satisfazia com nenhuma resposta visto que nenhuma respondia essencialmente a nenhuma de suas questões, todas eram meramente superficiais.
Sócrates enraíza de vez que o filósofo deve ser apenas um amigo da sabedoria, e não necessariamente um sábio. O filósofo deve procurar abrir possibilidades, alternar caminhos, duvidar, indagar, criticar. Deve questionar sempre a respeito das coisas, de modo que se busque a verdade.
Sócrates demonstra claramente que, ao invés de procurarmos respondermos as coisas, devemos procurar indagar as mesmas.
Sócrates utiliza de outro método que é característica em quase toda a filosofia: o método da lógica e da razão. A negação está sempre presente na filosofia de Sócrates como parte integrante do ato de duvidar. Este ato de duvidar pressupõe chegar à algum conhecimento sustentável, ainda que esta dúvida possa desmoronar conhecimentos que eram tidos como verdadeiros e que por isto mesmo pode gerar grande decepção e, conseqüentemente, dor, e por isto Sócrates se considerava um parteiro, pois num diálogo ele fazia o parto de novas questões, de novas idéias, e geralmente elas vinham com muita dor através da negação de um conceito anterior.
Aí está mais uma característica de um pensamento filosófico: o filósofo deve parir idéias, pontos de vista e novos conhecimentos.
Ainda na Apologia de Sócrates somos convidados por Sócrates ao ápice de seu julgamento e de seu amor pelo saber. Sócrates é condenado a morte, mas ainda lhe resta uma chance, basta parar de praticar a sua filosofia e se exilar de Atenas para conseguir a anistia, mas Sócrates, quase que num ato de paixão, recusa estes termos escolhendo a sua própria morte, cujo podemos observar num trecho de extrema dignidade e devoção ao conhecimento.
“Algum de vós talvez pudesse contestar-me: Em silêncio e quieto, Ó Sócrates, não poderias viver após ter saído de Atenas? Isso seria simplesmente impossível. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, não acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos dissesse que esse é o maior bem para o homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de ser vivida, acreditar-me-iam menos ainda.” PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: Os Pensadores; tradução Enrico Corvisieri. 1º ed. São Paulo : Nova Cultural, 2004. Pg.91 (Os Pensadores).
Creio que após a leitura de um trecho como este, que demonstra uma lealdade a própria verdade, que no final é como ensinar filosofia a própria filosofia, o título deste texto poderia muito bem ser A paixão de Sócrates pois após a vida deste grande a certeza que fica é que a humanidade tomou o seu próprio caminho, que de certa maneira entendeu o significado do que é a filosofia, pois daí a filosofia gerou grandes filhos (a começar por Platão e Aristóteles), que para a filosofia se tornar útil a humanidade deve se manter inútil em sua própria jornada, que deve ser descomprometida, para que daí surjam os grandes sistemas que geram grandes ciências que se voltam para o próprio homem, como aconteceu com a psicologia, com a sociologia, com a medicina, com a biologia, quanto a física, entre tantas outras, todas filhas da grande mãe filosofia.
A humanidade deve respeitar os seus filósofos e lhe deixar trabalhar, lhe deixar refletir, lhe deixar criticar, pois como tal ele busca um bem maior.
Ele busca, infinitamente, a própria verdade.
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