Era só o que faltava: a máquina acaba de assinar um tratado com a Dona Morte, onde através do seu emissário, o Deus-Dinheiro, promete acabar com a dor daqueles que subitamente perderam um ente querido.
Ao menos é o que ficou evidente num acontecimento bastante recente em meu próprio meio: uma colega muito querida em nosso ambiente de trabalho perdeu o pai em um acidente trágico. Nós, que ficamos sem entender muito bem o que havia acontecido, fomos comunicados horas depois com maiores detalhes a respeito do fato.
Nas conversas paralelas provenientes deste assunto, o que mais pesa, evidentemente, é a tristeza que sentimos por nossa colega, que perdeu um ente de maneira tão inesperada e injusta. Sem refletir acerca do tema morte, as pessoas mais próximas desta colega se sentiam incomodadas e queriam fazer alguma coisa que pudessem conforta-la, o que é humano e natural: são raros os casos em que as pessoas reagem com indiferença. Entretanto, muitas vezes, apenas o silêncio basta para respeitar a dor dos que ficaram e a memória da vítima, outras vezes bastará apenas escutar, ou então um abraço caloroso. Palavras, ao meu ver, nunca são bem-vindas nas situações que envolvem os sentimentos mais íntimos e particulares, até porque palavras de quem não tem conhecimento de causa não podem dizer muitas coisas.
Enfim, nada de anormal até este momento. Porém, hoje pela manhã, recebo o seguinte e-mail:
"(...)é um momento difícil e não existem muitas palavras a serem ditas para o conforto, mas sabemos que o apoio dos amigos nesta hora é muito importante.
Pensamos em uma forma de tentar colaborar e aliviar o desgaste deste momento, então se possível, quem puder colaborar para as despesas de nossa amiga, abaixo o número de sua Conta Corrente: Ag xxxx e cc yyyyy-y"
Sim, meus caros, não há muito o que dizer, vocês mesmos podem concluir o que bem entender. A máquina, disfarçada de boa samaritana, resolveu dar um fim a dor através do dinheiro! Isto jamais poderá ser um ato de generosidade, muito pelo contrário, é um ato de covardia! Tantas coisas que poderiam ser feitas, inclusive se manter em silêncio em sinal de respeito, e as pessoas, incomodadas, preferem aliviar as suas angústias fazendo um pequeno depósito.
Dinheiro algum irá aliviar a dor da pobre coitada que está a chorar pelo seu ente! Ao menos eu quero acreditar nisto, pois prefiro morrer do que ver chegar o dia em que a máquina substitua as lágrimas da morte pela compensação financeira!
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Aí de todos se a internet pudesse escutar a minha revolta! Haveriam terremotos em todos os portais, web mails seriam demolidos e monitores explodiriam! Minhas palavras ecoariam em cada sala de bate-papo!
O que acontece, neste caso, é muito simples: a pessoa, aflita pelo sofrimento de sua amiga, precisando se livrar deste sentimento negativo, vai rapidamente até o banco e faz um depósito. Ufa! Que alívio! Fiz a minha parte! Por quê está pessoa não se voluntaria para carregar o caixão? Para cavar a cova? Para servir o café no funeral? Para cuidar de todos os pormenores? Porque a máquina ilude, coloca o capital acima de tudo, e por estar acima de tudo, não é logicamente coerente que a pessoa dê dinheiro para aliviar a dor? Cadê o humanismo, minha gente! Cadê as relações próximas que nos fazem humanos? Será que nos tornamos, realmente, humandróides? Tudo se revolve com a troca de objetos? Com mesquinharias? Será que o dinheiro comprou a amizade, o perdão e o amor?
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Que desçam os anjos do apocalypse e dêem um fim em tudo, que negociem o valor de nossa alma com a Dona Morte pelo preço mais barato possível, afinal seremos arrebatados por atacado. A máquina deve estar dando risada: como tudo parece tão rídiculo e tão verdadeiro.
As pessoas se sentem muito mais confortáveis em dar dinheiro do que prestar sinceridades afetivas. No final das contas, é bem menos custoso.
ResponderExcluirAlém disso, creio que a pessoa que sugeriu os depósitos espontâneos, e aqueles que efetivamente o fizeram, provavelmente se sentiram aliviadas e com a sensação de dever cumprido.
Isso tudo é fruto do cenário em que vivemos. Um cenário desumano, que muitas vezes nos parece irreal demais pra ser verdade.