terça-feira, 10 de junho de 2008

Os Leões de Bagdá: Uma Leitura Existencialista

Não é de hoje que eu digo que quadrinhos não é mais somente coisa de criança, afinal as crianças de outrora cresceram e adaptaram algumas diversões da infância para os seus dias - a história se repete com o videogame. Grandes celebridades intelectuais, reconhecidos inclusive pela literatura, estão presentes neste meio, como é o caso dos britânicos Alan Moore (criador do aterrorizante e apocaliptico V de Vingança) e Neil Gaiman, que colocou uma HQ (história em quadrinhos) pela primeira vez na lista dos livros mais vendidos da New York Times.

Atualmente temos uma série de escritores de HQ que desenvolvem histórias com temáticas adultas e complexas, que vão desde critícas ao sistema político americano até a extremidade da crueldade e violência entre os homens. Um destes escritores é Brian K.Vaughan, que já colocou um ex-superherói como presidente da república (Na série Ex-Machina) e um mundo onde existe apenas um homem e o restante da população é composta por mulheres (Y - The Last Man). Neste mês, a editora italiana Panini soltou em bancas e livrarias especializadas a sua obra "Os Leões de Bagdá", brilhantemente desenhada por Niko Henrichon. Esta é uma das grandes obras da literatura em quadrinhos, onde podemos tirar inúmeras lições e nos permite uma série de reflexões.

A história é baseada em acontecimentos reais, quando em 2003 quatro leões, sedentos e esfomeados, fugiram do zoológico, em plena ocupação americana, para as ruas de Bagdá. Seguindo esta premissa Brian K. Vaughan cria uma obra de características existencialistas e que faz valer a pena a leitura cuidadosa de cada página da graphic novel.

Já faz tempo que a comida não chega. Os leões tentam entender o porque não estão sendo alimentados, embora o seu universo seja restrito e eles não conseguem imaginar o que está acontecendo. Porém logo uma bomba cai no zoológico e eles têm a possibilidade de fugir em liberdade. Surge a primeira discussão, eles devem ir embora ou devem esperar que as coisas se restabeleçam?

Existe uma predisposição a se manter em seu local de origem justamente pelo medo do desconhecido. Afinal, o que estaria do lado de fora? Porém, vale a pena se arriscar? Os riscos trariam recompensas? Se os leões estavam felizes, porque trocariam o certo pelo duvidoso? Estas questões estão intrinsicamente ligadas a humanidade do ser, afinal quantas vezes não nos deparamos com a mesma situação? Quando sabermos qual é o momento certo de acelerar ou frear nossas vontades e nossas intenções? Enfim, desgraçadamente, somos obrigados a tomar uma decisão: seguir adiante ou nos mantermos inertes?

Na história, a fome e o desejo de ser livre faz com que três leões decidam tomar os caminhos da rua, afinal, como um deles afirma, a liberdade não é privilégio dos homens - se eles conseguem nós também conseguimos. Isto é uma crítica brilhante ao caracterizar o homem como um estranho a si mesmo, que não se entende, sempre está em conflito, comete atrocidades e ainda assim se firma como um ser livre. Se uma criatura tão problemática pode declarar a sua liberdade, porque eles, os leões, não podem?

No decorrer, o outro leão que havia ficado para trás também se junta ao grupo. Um universo totalmente desconhecido surge para eles: neste momento, o que há é somente a existência. Eles somente existem, mais nada. Com as experiências que eles irão adquirir em sua jornada é que eles formarão a sua essência. Eles foram arremessados no mundo e precisam tomar decisões.

Tudo é novo neste universo e tudo é muito estranho. Algumas pessoas estão mortas no chão, porém por mais que a fome seja grande, eles decidem não comer os corpos, afinal pessoas semelhantes a aquelas até há pouco tempo lhes alimentavam. Animais também tem o seu código de ética e moral. Mais uma vez Brian K.Vaughan faz uma crítica ao egocentrismo do homem. Conviver em sociedade não é uma característica do homem e todos os seres-vivos sabem fazer isto a sua maneira. Aqui há uma inversão: os homens foram mortos por eles mesmos, e quando os leões decidem não comê-los eles estão enaltecendo a propriedade animalesca do homem. É como se o autor quisesse dizer que mesmo no reino animal há respeito e moral entre os seres, e se há um animal selvagem de verdade este é o próprio homem.

Ao término, os quatro leões são chacinados por metralhadoras americanas sem saber a razão. Não há ameaça. Eles nem, ao menos, observam de onde vem os tiros. Simplesmente morrem. No contexto existencialista, onde a vida é um absurdo onde por mais que se faça algo, o fim será sempre a morte, este final é mais do que adequado. Não há significado em toda a trajetória dos leões. Em um momento eles estavam vivos, ainda que perdidos e sem entender sua própria realidade, e no momento seguinte estavam, inesperadamente, mortos.

O que Brian K.Vaughan desenha em seu enrendo é o próprio desenho da vida no contexto existêncial. As coisas ocorrem sem que haja sentido, tudo parece uma grande irônia. As decisões que os quatro tomaram entre ficar no zoológico e tentar a liberdade nas ruas não trouxeram nenhum significado para a história de vida que eles haviam construído até ali. Eles simplesmente existiram, miseravelmente começaram a adquirir uma essência, fizeram escolhas que não levaram a lugar algum e, fatalmente, morreram. Será que esta seria a liberdade que eles tanto procuravam conquistar? E qual a finalidade desta liberdade?

Para o existencialismo, a liberdade serviu, penosamente, para que eles escolhessem um caminho. Eles também poderiam ter optado por ficar no zoológico, mas preferiram descobrir a vida nas ruas. Sabemos que este escolha os levou a confusão e a morte, porém o que aconteceria se eles tivessem ficado? Não há como saber, pois não há previsibilidade na existência. Sabemos apenas que existimos, o resta se dá com a própria vida. Independente do que você faça, seja para o bem, seja para o mal, as consequências são aleatórias.

Enfim, como já dito, toda a vida não passa de um grande absurdo.

Os Leões de Bagdá
Brian K.Vaughan / Niko Henrichon
Panini Comics
* Vencedor do HARVEY AWARDS® 2007 como melhor graphic novel.

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