domingo, 17 de agosto de 2008

A Imbecilidade de Pierre Bayard

Neste mês a capa da revista Superinteressante (Ed. 255 / Agosto de 2008) traz uma chamada instigante: como falar de livros que você não leu. Curioso, resolvi conferir a matéria e se tratava de uma entrevista com o professor de literatura e psicanilista francês Pierre Bayard, para mim um dos grandes charlatões do universo culto contemporâneo, uma espécie de sofista intelectual de nosso tempo.

Bayard vem chamando a atenção do público e da mídia desde a publicação do livro Comment parler des livres que l'on n'a pas lus? (lançado no Brasil com o título Como Falar de Livros que Não Lemos?). No livro, segundo a sinopse, o professor defende a idéia de que ler um livro não é importante, que devemos assumir a postura de não nos envergonhamos quando não lemos um dos grandes clássicos, e ainda assim não devemos nos abster de falar a respeito dele, visto que não é o livro que está em questão, mas a situação do discurso proveniente dele.

Mas espera aí, como uma pessoa que diz que ler um livro não é tão importante utiliza do objeto criticado para expor a sua tese? Porque ele não utilizou de um vídeo para divulgar aquilo que acredita? Este são os primeiros sintomas de um enganador que utiliza de retórica para persuadir os leitores. Até mesmo o entrevistador - Leandro Narloch - deve ter se incomodado com a questão, de como que ele lança "Se não temos a obrigação de ler tudo, porque alguém deveria ler o seu livro?". A resposta não convence: "Não deveria. Eu escrevo pensando em pessoas que se interessam pelos livros (sério?) e que gostam de refletir sobre hábitos de leitura."

Logo no início da entrevista Bayard diz que é possível ser culto sem ler um livro inteiro, pois para uma pessoa "realmente" culta, o importante é saber se situar dentro do livro. Sim, ele tem razão quando diz que o mais importante é tomar ciência do conteúdo do livro. Porém não vejo possibilidade de se aprofundar num conteúdo sem conhecer a fundo as motivações, o contexto, o começo, o meio e o fim. Caso se conheça apenas o meio, ou a sinopse, teremos que reconstruir com a nossa imaginação todos os fatos que estão presentes no livro, mas não presentes na idéia central. Em Crime e Castigo, podemos saber exatamente toda o enredo de antemão, até mesmo porque ele é simples e não tem complicações: Raskolnikóv é um jovem perturbado por sua pobreza, que devido a uma teoria que justifica crimes para um bem maior, comete o assassinato de uma velha agiota. Porém, devido a influência da prostituta Sônia (com seus idéias religiosos ortodoxos), Raskolnikóv se entrega.

Pronto! Resumimos Crime e Castigo de Dostoiévski! Porém a mágia do livro reside na complexidade de cada personagem, nas entrelinhas, que permitem que descobrimos grandes evidências de como vivia Dostoévski nas ruas de São Petesburgo naquela época. Sabemos até mesmo quais eram as idéias discutidas pelo povo naquele tempo. Se nos arriscarmos a falar sobre a obra sem a conhecê-la, estaremos cometendo uma injustiça não só com o escritor russo, mas com todos os escritores do mundo, os vivos e os mortos, pois estaremos falando de nossas impressões a respeito de algo que nem mesmo conhecemos a fundo. Estaremos, muitas vezes, colocando palavras que não existem num livro que já está consagrado, tornando-o diferente daquilo que ele realmente é.

Em minhas primeiras aulas de filosofia como aluno, não conseguia, após ler um texto de um filósofo consagrado, como Foucault, segurar o impeto de escrever a minha opinião a respeito do assunto. Logo era recriminado pelo meu professor que dizia que ele não queria saber o que eu achava a respeito de algo, mas o que o autor queria dizer. Depois de um tempo eu aprendi a diferença de uma maneira bastante simples: prestando atenção na pergunta. Por exemplo, quando numa proposta aparecia a seguinte questão "O que significa a domesticação do sujeito para Foucault?" eu deveria escrever o significado do termo usando as palavras de Foucault e não as minhas. Agora quando aparecia "O que significa a domesticação do sujeito explicada por Foucault para você?" então aí sim eu estava autorizado a dar a minha opinião, porém jamais poderia responder esta questão sem saber como responder a anterior.

Este é um erro bastante comum de cometer, pois somos seres que julgamos e analisamos a todo o instante. Bayard esquece que a obra de um autor representa a sua casa, um clássico representa a sala e os demais livros representa os outros cômodos. Para falar de uma casa com precisão precisamos visitá-la e apreciar todos os seus ornamentos. Muitas vezes precisamos visitar os livros não apenas uma vez, mas várias. Caso contrário, poderemos parecer tolos ao tentar iniciar um discurso sem conhecimento pleno do que falamos. Me diga como é possível discutir a fundo "Ser e Tempo" de Martin Heidegger sem ler, ao menos, duas vezes? Você pode até discutir a superfície da obra através dos estudos e pesquisar publicados acerca do assunto, mas jamais poderá vivenciar as descobertas juntos com o autor e nem dar um olhar diferente para o seu texto.

Como Bayard poderia defender uma tese de doutorado a respeito de Wittgenstein sem ter lido, sendo bem generoso, o Tratactus cem vezes? Olhos abertos, minha gente, temos mais um picareta disfarçado de homem culto na área tentando conquistar uma série de novos adeptos - pessoas preguiçosas que vêem na figura do professor uma justificativa a mais para continuar em frente a televisão. Nos EUA ele já é bestseller. Também, pudera.

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