Se o ser arremessado no mundo e sem consciência de si mesmo é característico do pensamento existencialista – no jargão filosófico “ele não é, vai sendo” – temos aqui uma pérola do cinema existencialista brasileiro. Não é a única, afinal textos de Lispector (a nossa diva existencialista) foram adaptados para as telas. Além disto, temos coisas mais recentes, como Estômago, que é quase um hibrido entre “O Perfume” de Patrick Suskind e “A Metamorfose” de Franz Kafka – talvez seja rotulado como estúpido por fazer esta comparação, porém este é o meu espaço e não me arrependo do que digo (se “Estômago” não é tão profundo e original, as influências dos dois clássicos não podem ser negadas).
Abril Despedaçado é uma adaptação tropical do livro com o mesmo título do escritor libanês Ismail Kadaré. Embora o roteiro tenha sido transportado para o sertão brasileiro, a história se manteve fiel (com exceção do desfecho). O filme é belamente dirigido por Walter Salles, sendo que diversas cenas beiram a uma poesia visual, onde a miséria contrasta com a esperança e a dignidade.
No enredo temos Tonho, filho (ou vítima?) de uma família que vive numa contenda sem fim contra outra família. Seu irmão acaba de ser morto e, por uma tradição que não se sabe como começou, terá que “cobrar” o sangue do falecido. Isto significa uma autorização expressa para matar o algoz. Porém, quando isto ocorrer ele também estará assinando a sua morte, visto que a família do assassino também deverá cobrar a sua vida.
E assim a tradição transcorre numa roda interminável. Tonho nem mesmo sabe a origem da briga, porém terá que arcar com o prejuízo. As contendas antecedem sua própria existência. As dívidas de sangue entre as duas famílias surgiram antes mesmo de seu pai nascer.
Regido pela única explicação plausível, Tonho sabe que aquilo que está em jogo é a honra da família patriarcal, em primeiro lugar, e a sua própria honra. Para que a honra prevaleça, deve-se obedecer a um código antigo: a vingança se dá apenas quando o sangue da camisa do falecido secar. Enquanto isto não ocorre é estabelecida uma trégua provisória, que representa os últimos dias de vida do assassino.
Tonho sabe que a sua vingança também representa sua morte. Sua família também sabe, mas isto não importa. Na parede da sala uma série de retratos mostra o semblante de outros que foram mortos em contendas, isto para não que ninguém nunca se esqueça que a honra precede o próprio sangue. Mas para que haja continuidade na história, após a camisa de seu irmão secar, Tonho vai até o assassino e o mata com tiros de espingarda.
Como o código rege, Tonho vai até a casa do morto velar o seu corpo e pedir a trégua para a família do falecido. Tradicionalmente, uma faixa preta é amarrada em seu braço para indicar a todos que ele estava marcado por uma dívida de sangue, ou seja, logo seria morto também.
E o que é a vida no meio disto tudo? Por onde trilha o desejo dos homens numa relação onde a honra – algo proveniente do imaginário – precede a vida? E para onde os homens devem caminhar, se ele já nasce morto?
Se a história transcreve uma vendeta absurda entre famílias, de tal modo que evidencia uma literatura existencial, o fantástico cinematográfico é retrato de uma prática real: uma prática conhecida no Líbano como Kanun.
No Kanun temos um código descrito em 12 partes onde, devido à ineficiência da justiça e descrédito nas forças policiais, é estipulado um conjunto de regras que objetivam exclusivamente alentar a honra das famílias, sendo que aqueles que são desonrados tem o direito de tirar a vida do seu agressor – mesmo que isto represente assinar o seu próprio atestado de óbito.
Tonho não entende que espécie de vida é esta que te leva por caminhos sinuosos e qual o real sentido da existência. No fundo, ele se conforma com o maior trunfo existencialista: não há significado algum. Simplesmente fazemos parte de um grande absurdo. O que resta á apreciar as coisas simples que a vida nos oferece sem tentar entender o que cada coisa representa.
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