sábado, 28 de junho de 2008

In Bruges: Outra Pérola Existencialista

Dois assassinos ingleses, após um trabalho mal sucedido, são enviados à Bruges - cidade da Bélgica - para aguardarem novas instruções sobre como procederem. Esta é a trama básica desta comédia trágica. Todo o restante da história é o vislumbre da perspectiva dos criminosos em relação à pacata e paradisíaca Bruges.

De um lado temos o jovem e agitado Ray, interpretado por Colin Farrel, que odeia toda a monotomia da cidade, além de não enxergar nada de belo em seus pontos mais impressionantes. Do outro lado temos Ken, interpretado por Blendam Gleeson, homem mais velho, calmo e dotado de grande cultura que sabe como apreciar a beleza mais íntima de uma paisagem ou construção antiga.

É na complexidade dos personagens, assim como nas aventuras a qual são expostos e que demonstram o verdadeiro ser interior de cada um, que encontramos uma possibilidade de análise de um dos melhores lançamentos deste ano.

Contém SPOILERS. A partir deste ponto, irei retomar pontos importantes de compreensão do filme. Sendo assim, se você ainda não viu o filme, pare por aqui e assista primeiro.

Ray é um jovem perturbado. Logo no início do filme ele se encarrega de menosprezar a cidade e os seus turistas. Acha tudo um grande tédio e não vê possibilidade alguma de se divertir. Ao seu lado, Ken está encantado. Tenta demonstrar toda a mágia do local para Ray, contando a história de cada local e a importância que a cidade teve no passado, porém Ray não se satisfaz, o que o deixa ainda mais inquieto.

Dado momento, os dois estão numa catedral e Ken, respeitosamente, diz que ali a história conta que num artefato temos o sangue de Cristo e que ele não poderia deixar de ir lá tocar o artefato. Depois de toda a explicação, visivelmente excitado por aquele momento, pergunta se Ray não quer ir com ele. Ray, indiferente, questiona se é obrigatório o toque no sangre de Cristo. Ken se irrita.

Isto demonstra que Ray é uma espécie de homem bruto. Está preocupado em beber e conquistar mulheres. Já Ken é o contraste disto tudo. Mesmo no hotel, ele nunca está sem um livro por perto.

Logo iremos saber que Ken e Ray, enquanto estavam na Inglaterra, participavam de um trabalho sujo sobre encomenda de seu chefe Harry - interpretado por Ralph Fiennes -, porém Ray matou, acidentalmente, um pequeno garoto que estava no local e recebeu uma bala perdida. Foi Harry que mandou os dois para Bruges até que ele resolvesse como iria acertas as coisas,

Uma das grandes aflições de Ray é justamente ter que conviver com o fantasma do garoto assassinado. Este duelo de sua consciência é algo extremamente belo. Ray não consegue deixar de pensar na morte do menino. Talvez este seja o motivo de tanta perturbação e inquietação. Ele quer fazer algo, mas não há mais o que fazer. Por isto mesmo ele chora constantemente, as vezes em silêncio, as vezes no ombro de Ken, que funciona como uma espécie de pai ao se comover com o sofrimento do jovem. Ken está sempre encobrindo suas trangressões e seus desvios. Sempre tentando lhe apoiar. Porém é muito difícil suportar a vida.

Até aqui temos dois pontos interessantes: 1) o garoto assassinado, que só entra na história para morrer; 2) o homem sujeito as tragédias do acaso e sua impotência diante da vida.

No primeiro caso, temos uma demonstração de quão absurda pode ser a vida. O garoto morre com uma bala perdida enquanto estava na catedral rezando por seu Deus, ou seja, diante da proteção Daquele que ele tem como mais seguro e confiável, na casa de seu Protetor. Homem algum espera ser acometido por uma fatalidade proveniente de uma força maligna num ambiente sacro de forças divinas. Por se tratar de um garoto, precisamos somar o fator da ingenuidade do ser em depositar todas as suas confidências num Ser que está num plano dirente do seu, que reside numa outra camada que é desconhecida para ele. E então acontece dele morrer, prematuramente, da forma mais inesperada possível. Podemos entender que neste caso não encontramos justiça no divino, como prega a maior parte das casas de fé.

No segundo caso, o homem está sujeito ao acaso. Ray não esperava matar uma criança, porém matou por irônia da vida. O absurdo consiste em ele tomar a culpa para si - ao invés de condenar a má sorte e o próprio conjunto de regras aleatórias da vida - graças a impossibilidade de desfazer algo que foi feito, ainda que de forma involuntária. O homem se sente desprezado, incapaz e impotente, pois nada depende de si, e sim da sorte.

Após alguns eventos, Harry liga para Ken e lhe relembra algumas regras, pois embora sejam assassinos, os criminosos também têm o seu próprio código de ética e moral: "Nós não matamos crianças. Você conhece a punição para aqueles que matam os pequeninos". Harry ainda pergunta: "Você sabe se Ray está gostando da viagem? Pois gostaria de proporcionar um ultimo prazer a ele antes de morrer".

Ken fica transtornado e não sabe exatamente como vai fazer o que lhe foi ordenado. Porém Harry tinha razão: regras foram feitas para serem cumpridas. Por isto ele até mesmo arquiteta um plano, porém na hora de executar ele não consegue: quando ele encontra Ray, o mesmo está com uma arma na cabeça, prestes a se suicidar. Ken consegue interromper a tempo, de tal modo que Ray chora bastante. Ele tem desejo de morrer, a vida não tem mais nenhum sentido.

Ken conta sobre o plano de Harry para matá-lo e sugere que ele fuja para outro país. Ele até embarca num trem para outro país, porém, por alguma razão, ele decide voltar a Bruges. Paralelamente, Ken liga para Harry e diz que ele não cumpriu a ordem, deixou Ray livre e disse que estaria esperando por ele na cidade. Harry, visivelmente irritado, na mesma hora embarca para Bruges para punir Ken.

Neste trecho, um ponto é intrigante: porque será que Ray resolveu voltar? Possivelmente ele não gostaria de viver como um foragido, numa outra cidade que ele nem mesmo conhecia. Para ele, era preferível a morte do que viver uma vida tão inautêntica, já que ele jamais iria poder voltar a Inglaterra, seu país natal. Além disto, seu único amigo esta em Bruges, além de uma nova paixão que talvez lhe desse uma razão para viver. Todavia, este estado que Ray alcançou não lhe causava mais nenhum medo e todos os riscos eram válidos.

Harry chega a cidade e logo encontra Ken. Este faz uma declaração apaixonada por tudo o que Harry fez por ele ao longo de sua vida, mas que ainda assim decidiu dar uma segunda chance para Ray, de modo que entregava a sua vida para o julgamento de Harry, que se emociona com o depoimento de Ken e apenas lhe dá um tiro na perna (para que o erro não passe despercebido). Porém logo chega a notícia que Ray está na cidade, então Ken tenta deter Harry. Mas, como se sabe, regras são regras e Ken acaba sendo assassinado justamente por tentar obstruir que Harry fosse até Ray.

Tão logo Harry encontra Ray, começa uma perseguição pelas ruas. Harry sai atirando em direção à Ray e acerta diversos disparos. Ao aproximar do corpo, percebe que também atingiu a cabeça de uma pessoa com o corpo pequenino. Ao obedecer o seu próprio código de ética e conduta, Harry se suicida com um tiro na cabeça em sinal de auto-punição. Porém, o que ele não sabe, é que o corpo não era de uma criança, e sim de um anão que passava por ali.

Mais pontos de discussão: Um anão, que não tinha nada a ver com nada, morreu de forma inesperada, assim como a criança que Ken havia assassinado; A lei é maior do que o próprio homem, por isto mesmo até o seu legislador é passível de punição; Harry se mata antes mesmo de saber quem ele havia matado. Se estivesse esperado um pouco mais, saberia que quem havia morrido não era uma criança, mas sim um homem. Ou seja, sofreu as consequências da irônia da vida, que dá risada de quão patético é o homem ao querer fazer as coisas certas.

Ao término do filme todos estão mortos. E qual é o sentido de tudo? Novamente todas as vidas não tem nenhum significado. O significado reside nas leis e nos objetos, que dizem como devemos viver e nos portar. Nós mesmos não temos opções, a não ser se sujeitar as regras deste jogo desonesto.

Quem assassina o roteiro e a direção desta pérola é o competente Martin McDonagh e como forma de demonstrar o quão desastrosa e inútil pode ser uma vida, In Brugues é um espetáculo imperdível! Confiram!

3 comentários:

  1. Caro amigo Evandro.

    Uma boa ótica do filme apresentada por você. Contudo, se me permite, há pequenas falhas em sua análise. Ray (Collin Farrell) não retorna a Burges por vontade própria. Muito menos é natural da Inglaterra.
    Vamos por partes:
    Em uma das primeiras cenas, Ken (Brendan Gleeson) insiste para que Ray suba no topo da catedral de Bruges para apreciar a vista. Recebe como resposta de Ray a afirmação que ele nasceu em Dublin, na Irlanda. E que a possibilidade ver a cidade de cima não lhe causa nenhum tipo de desejo. Portanto, o personagem é irlandês e não inglês.
    Se você se recordar bem, vai lembrar do segundo encontro entre Chlöe (Clémence Poésy) e Ray quando os dois estão jantando. Um homem da mesa vizinha se irrita com a fumaça do cigarro de Chlöe e cobra satisfações a Ray. Inicia-se uma discussão, enquanto Chlöe foi ao banheiro e Ray agride o homem e sua esposa. Mais tarde, dentro do trem, ele é reconhecido pelo casal e preso pela polícia, que o faz retornar a Bruges para aguardar sua sentença. Ray deixa a prisão graça a Chlöe que paga sua fiança de soltura.
    Quanto ao anão, o ator Jordan Prentice, sua participação no filme é vital. Exatamente por sua existência que o desfecho trágico ocorre. Uma ética, mesmo entre assassinos, deve ser respeitada. É exatamente o que Harry faz ao se suicidar.
    Na minha opinião, o melhor momento do filme é a cena que o encerra. Ray agonizando na maca é levado para dentro da ambulância. Neste momento, o diretor Martin McDonagh leva o espectador a enxergar tudo ao redor pelos olhos de Ray, fazendo com que nos tornemos o personagem. E ouvimos seus pensamentos, sentimos sua tortura e, por fim, McDonagh congela a imagem final, dando a entender que nós vemos a morte de Ray de dentro de seu próprio corpo. O diretor é bom, e este foi o seu filme de estréia. Começou muito bem.

    Abraços

    Marco.

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  2. Olá Marco! Excelente apontamentos que passaram em branco ao meu olhar. Fiquei tão vislumbrado no meu objeto de reflexão que esqueci partes da trama. Irei atualizar o texto, conforme os dois apontamentos!
    Muito obrigado!

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  3. Muito boa a análise ainda mais quando completa com o comentário do colega acima.
    Achei o filme muito bom, tinha feito uma análise bem mais superficial, porém já tinha me dado conta da profundidade e complexidade dos personagens, bem como os dilemas morais enfrentados o tempo todo.
    Porém, do ponto de vista menos analítico em relação á filosofia pretendida pelo filme, achei que o humor das ultimas cenas foi meio fraco em relação ao resto do filme.

    Me lembrou muito o Matadores de Velhinhas nesse sentido. Gostei do filme mas achei que os ultimos 20 minutos me decepcionaram um pouco, bem como o desfecho.

    Parabéns pela análise!

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