sábado, 9 de maio de 2009

A Morte de Ivan Ilitch

"O homem pode viver 100 anos na cidade sem perceber que já está morto há muito tempo" - Léon Tolstói

Este conto - talvez o mais conhecido do escritor russo Leon Tolstói - trata de um tema cada vez mais recorrente numa era onde o consumo é o verbo que mais cresce em nosso vocabulário: o apego às coisas mundanas e materiais, que no fim oferece um caminho que leva, fatalmente, à não-vida e à subordinação do sujeito aos objetos de insignificação.

Tolstói, como sabemos, preocupava-se constantemente com o tema morte e com a necessidade de encontrar uma luz para viver. Neste contexto, o que é a vida? O escritor russo irá entender que a vida reside no modo simples de existir e no desapego das coisas mundanas. Também há uma crítica a sociedade do faz-de-conta, aquela que se importa. De certa maneira, A Morte de Ivan Ilitch é um retrato deste período existencialista de Tolstói.

Ele já começa o conto com o humor ácido característico em seus textos: a primeira parte se inicia no funeral de Ivan Ilitch, onde ninguém parece se preocupar com o morto ou chorar por sua memória. O que importa, entretanto, é quem haverá de assumir o cargo deixado por ele, ou quanto de pensão sua família conseguirá receber. Mesmo aquele que era considerado o melhor amigo do protagonista irá ao enterro não por vontade própria, mas sim por obrigação social. Tanto é que depois do enterro ele se direciona para um carteado, onde diversos amigos lhe aguardam (como se não houvesse acontecido nada).

Ivan Ilitch é o típico homem condicionado ao seu modo de viver: quando jovem, se envolve com mulheres, bebidas e jogatina. Ao iniciar a vida profissional, faz da execução do trabalho o seu maior prazer, tanto que logo irá transitar entre outros cargos de maior importância e irá se derreter em orgulho. Ele acaba por casar com uma mulher puramente pela renda que ela poderia agregar ao seu caixa.

Enfim, Ivan Ilitch era um homem repleto de luxúria, cujo status social era a única coisa que importava e cuja felicidade aparente era mais importante que a felicidade real. Ele acreditava tanto nesta ideia que a vivenciava com vigor e tremenda satisfação, de modo que acreditava profundamente que ali, na relação do homem com os seus objetos e com suas relações sociais, residia a vida.

Tanto é que Ivan Ilitch, para sustentar o seu padrão, estava sempre a pegar empréstimos financeiros. Logo a situação fica muito complicada. Por sorte do destino, um amigo do protagonista irá alcançar um cargo de chefia e irá lhe colocar num cargo que oferece uma remuneração bem maior do que a atual.

É a virada de Ivan Ilitch e a redescoberta da felicidade, que reside intrinsecamente em sua posição social. Como o novo cargo fica numa cidade distante, Ivan Ilitch vai à frente para cuidar da nova casa e da acomodação da família. Impressionado com a casa e totalmente apegado à decoração, Ivan Ilitch passa os seus dias pensando em como melhor ajustar os móveis nos diversos ambientes.

Num destes dias de empolgação, ao arrumar um dos ambientes, Ivan Ilitch sofre um leve acidente, cuja pancada próxima aos rins irá causar um pequeno inchaço e um pouco de dor. A partir dai acompanhamos a verdadeira virada da história: este pequeno ferimento irá agravar e em questão de meses Ivan Ilitch estará morto.

Temos então o início do fim. No princípio era apenas uma dor que incomodava, mas não o suficiente para atrapalhar a rotina do protagonista. Porém logo ela irá piorar e ele se vê obrigado a procurar um médico. O doutor acreditar estar diante de algo comum, prescreve alguns medicamentos e manda Ivan Ilitch embora. Embora ele siga as recomendações do médico, a dor vai ficando mais forte, de modo que ele começa a não conseguir fazer mais certas coisas simples, como se levantar sozinho. Novamente a procura do médico, este ainda acha que a situação está sob controle e recita mais outros medicamentos. Mas a dor vem novamente, e ainda mais intensa.

Logo Ivan Ilitch irá se deparar com a indiferença e o descaso das pessoas em relação aos seus sentimentos. Ele sabe que algo estranho acontece, porém todos ignoram o seu problema e pensam que é algo repentino, que em breve estará curado. E por mais que ele insista que a sua doença é grave, tanto os médicos quanto sua família preferem não ouví-lo. Ele passa a odiar à todos, principalmente por ser ignorado - os seus sentimentos estão repletos de rancor e até mesmo inveja (dado o estado de saúde dos demais). Ivan Ilitch não quer morrer. Para ele a morte está tão distante e ele sente que ainda tem tanto para fazer, porém o seu corpo diz justamente o contrário: Ivan Ilitch sabe que vai morrer.

Ivan Ilitch chega à um estado que não permita mais que saia de sua sala. Porém uma mudança se opera em sua alma através da figura de um dos seus criados, homem extremamente simples, feliz e dedicado, que passa os dias aliviando a dor de seu patrão ao esticar as pernas. Ivan Ilitch, de pronto, não consegue entender a felicidade do empregado, mesmo diante de tarefas indignas, como limpar as fezes do patrão e até mesmo dormir sentado apenas para que Ivan consiga colocar as pernas em seus ombros pelo maior tempo possível (uma vez que era a posição onde a dor menos lhe incomodava).

O protagonista começará a entrar num conflito de ideias: se ele, que teve tudo, não era essencialmente feliz, como poderia um ser tão miserável, com afazeres tão ingratos, radiar felicidade? Somente uma conclusão seria possível: a felicidade não reside nas coisas a qual acreditava deixar-lhe feliz. Ivan Ilitch irá entender que o segredo era viver a simplicidade da vida, e não a sofisticação. Uma vida repleta de coisas lhe faria um cego que não conseguiria enxergar além daquele prisma, de tal modo que o castigo de levar uma vida destas seria sofrer demasiadamente por não conseguir se desfazer destes objetos de prazer. Já aquele que nunca teve nada é o que viveria a vida da forma mais natural, afinal ele trilhava o caminho conforme se apresentava desde o início: sem ambições - logo, sem sofrimento.

Por fim, Ivan Ilitch irá falecer após três dias berrando de dor. Sua morte, de certa maneira, só pode acontecer porque ele deixou de resistir ao ver que sua morte poderia ser algo bom. Num acesso de luz ao observar o sofrimento de seu filho mais novo, e também de sua esposa, ele percebeu que poderia trazer lhes certo bem e certo alívio após deixar de existir. Com sua morte, chegamos ao fim da história. Porém há uma inversão de conceitos, semelhante à aquele que João Cabral de Melo Neto nos apresentou em seu célebre Morte e Vida Severina: com o advento da luz e percepção do erro ao convencer que sua vida não foi vida, senão morte, Ivan Ilitch experimentou, em seus últimos momentos, a vida simples e pura, mesmo que por instantes. Debilitado em sua cama, alguém próximo diz: "Ele se foi". Ao ouvir, o protagonista, sem forças, diz para si mesmo: "A morte se foi". Sim, pois a morte já não estava mais ali era o fim da morte a qual foi toda a sua vida. Ivan Ilitch morre resignado ao saber que jamais viveu.

A obra representa uma tênue linha entre o Tolstói e o seu personagem Ivan Ilitch. Escrita já na velhice (com a morte rondando em sua mente), Tolstói rejeita todo o apego material, ressalta a importância de se viver de modo simples - assim como os camponeses que tanto admirava - e renega sua própria juventude (de muita bebida e jogatina). Talvez por pensar que chegava próximo à morte sem saber o que era ter vivido, Tolstói viu-se obrigado a tomar uma atitude que colocasse o seu mundo do avesso. Ivan Ilitch também percorreu caminho semelhante: diante da perspectiva de morte, houve uma necessidade de reavaliar o seu passado e observar que ali a vida não residiu. A vida esteve disponível, porém ele optou por outros caminhos que, fatalmente, lhe levaram ao arrependimento.

Observamos, portanto, há mais de 100 anos, um personagem típico de nossos dias, onde o acumulo de riquezas e status social, sinônimos da ilusão e de felicidade inautêntica - são retratos fieis de uma sociedade robótica, ignorante e egocêntrica, onde o que importa é apenas a si mesmo, sendo que os outros, que são outros e nada mais, são totalmente jogados no buraco do esquecimento.

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