domingo, 3 de julho de 2011

A Liberdade é Azul


O diretor polonês Krzysztof Kieslowski tem se tornado minha nova obsessão, visto que sou fascinado pelo movimento existencialista. Sei que corro um grave risco pelo rótulo, mas não posso ser omisso: todos os elementos da corrente estão presentes em seus filmes – com destaque para a característica mor, o absurdo de existir (a ironia da vida).

Em A Liberdade é Azul, um dos filmes da fase francesa do diretor, outro ponto é ainda mais marcante: a liberdade como penitência durante a formação do homem. Sim, a liberdade, tão objetivada pelo ser humano, surge no movimento, assim como neste filme, como efeito negativo – visto que nos exige escolher cada instante a ser vivido, sendo que nós, quase sempre, achamos esta tarefa tão árdua e desgastante que optamos por outras pessoas que possam escolher por nós (este é um dos motivos vivermos num sistema de hierarquias, muitas vezes eleitas pelas próprias pessoas – como acontece no sistema político ou mesmo em grêmios estudantis).

No primeiro filme da Trilogia das Cores, que fazem alusão as cores da bandeira da França, assim como os significados das mesmas, observamos um absurdo que determinará toda a história do filme, que nada mais é do que um retrato vivo do cotidiano: um acidente de automóvel ocasionado por uma falha mecânica num carro praticamente novo (lembre-se que estamos nos tempos do recall) irá separar uma família para todo sempre – morre a filha e o pai e sobrevive a esposa.

O acidente é causado por um motivo tão tolo que o diretor faz questão de nos apresentar nos primeiros momentos do filme: durante a viagem a menina sai do carro para urinar. Quando volta o óleo está pingando vagarosamente. Pois é, tão pouquíssimas gotas, quase inofensivas, serão as responsáveis por alterar todo o curso do destino.

Um pouco mais a frente, num dia como qualquer outro, o carro derrapa e somente Julie, a protagonista, tem a infelicidade de acordar no hospital. Posteriormente sabemos que toda a vida de Julie estava intrinsicamente ligada a sua família. Logo, sem família, ela não tinha mais nada para se apegar, portanto, estava melancolicamente livre.

A morte de seus entes foi transfigurada na chave para a liberdade. Este é o preço a se pagar e certamente ser livre neste contexto não é algo benquisto e muito menos desejado. Portanto Julie está diante da liberdade, nua e crua. No aspecto mais existencialista possível, passamos a observar como se dá os dias da protagonista após o acaso a qual qualquer um está sujeito.

O que vemos é a vã tentativa da protagonista desvincular-se da sua vida anterior: tudo aquilo que lhe faz lembrar-se de sua filha ou de seu marido é descartado sem a mínima razão – aqui temos sentimentos elevados à flor da pele, dando vazão ao humanismo do ser diante dos absurdos, como se não fossemos mais do que brinquedos num mundo tão complexo. Lá se bens, roupas, títulos e o principal: uma composição inacabada de seu marido, a título de encomenda, chamado “Concerto Pela Unificação da Europa”.

Somente uma coisa não pode ser descartada: as lembranças de sua vida anterior. O esforço que Julie faz é notável, muitas vezes comovente, mesmo diante de sua frieza diante de sua nova morte – que é a vida sem sentido de ser, ou seja, a vida no seu nível mais essencial.

Estas lembranças surgem cruéis justamente para impossibilitar que o plano do esquecimento de Julie dê certo. Na vida nada é tão simples assim, onde é só apertar um botão que desligamos aquilo que não mais queremos em nossa mente. A composição de seu marido, como reforço do tom artístico do filme, insiste em perpetuar juntamente com sua dor.

Justamente a parte inacabada, aquela a qual não se tem mais registro, toca na mente da protagonista em cada momento da mais profunda expressão de sentimento. Se Julie não demonstra, sabemos que a música chora por si – nestes momentos o diretor fecha os nossos olhos e respeitamos a privacidade da personagem central.

Após tantos apagões, o que fica claro é Julie busca um suicídio vivo, uma lenta degradação da espécie, onde o que importa é o passar dos dias, nada mais. Tudo aquilo que remete a vida lhe traz novas experimentações, nem sempre bem recebida, e outras vezes visível sob um prisma de quem não quer mais estar ali – espiamos estas experiências com certa compaixão pela protagonista, que observa com certa inveja atrelada a tristeza e dor.

Em dois momentos isto fica claro: quando no banco de uma praça uma velha, com muito esforço, leva um dejeto para o lixo – ou seja, Julie enxerga motivação mesmo em idade tão avançada – e em sua própria mãe, que adora ver programas de esportes na televisão, e vibra muito com isto – uma referência tão simples para consegue preencher totalmente um motivo para viver.

Estes pequenos containers de vida são grandes chagas na alma de Julie: como eles conseguem se contentar com tão pouco? Onde eles encontram forças para continuar?

Eis que ela então traz o seu container: a explicação vem da própria canção inacabada, que está bem viva em sua mente – neste caso é hora de terminar a canção e deixar que as almas descansem em paz, principalmente a sua. É hora de continuar. No final há uma solução otimista, o que de fato é surpreendente, ao mesmo tempo em que é reconfortante: Julie brinda sua nova vida com lágrimas por tudo que ficou para trás, mas está conformada, resignada e abre um leve sorriso, suficiente para entendermos que as portas passadas foram fechadas e que agora resta a esperança por uma vida melhor.

Se a história é simples, o que faz a diferença é a batuta de Krzysztof Kieslowski, que transforma este num dos melhores filmes de todos os tempos, graças a sua delicadeza, sutileza e outros detalhes técnicos de grande apreciação. As cenas podem relevar detalhes chaves da história, portanto é bom assisti-lo de olhos bem abertos.

O filme é praticamente todo azul, o que eleva o nível de frieza da liberdade, ao mesmo tempo em que situa a história quase como que num oceano – o que traz à mente a liberdade por dentro do mar, tão bonita e tão solitária em sua grandeza quase que infinita.

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