terça-feira, 21 de setembro de 2010
Albert Camus: A Queda
Uma vez, numa apresentação de grupos na Faculdade de Filosofia, observamos um grupo gigantesco, cerca de onze alunos, apresentar um trabalho a respeito de um livro de Thomas Kuhn - o excelente A Estrutura das Revoluções Científicas. Um dos integrantes do grupo levou cerca de 50 minutos para explicar meio capítulo do livro. Já outro integrante levou apenas 15 minutos para explicar dois capítulos inteiros.
Ao término, o professor avaliou as apresentações de forma individual e mediante toda a classe deu sua sentença: há pessoas que falam, falam e falam, e não dizem absolutamente nada, há outras, entretanto, que em poucas palavras se manifestam com tamanha maestria que nada mais precisa ser dito. Assim é com A Queda, livro de apenas 110 páginas do nobel da literatura Albert Camus, escritor e filósofo existencialista - cuja obra mais famosa, O Estrangeiro, já foi analisada por este blog e se tornou um dos meus prediletos objetos de culto.
A Queda é um livro surpreendente. Ele não é um típico livro de fácil digestão, muito pelo contrário, exige inclusive certo esforço do leitor para acompanhá-lo sem se distrair, visto que por vezes a leitura se torna maçante, talvez por sua fórmula ousada: um monólogo que acaba por se tornar extenso, onde a figura de Jean-Baptiste Clamance, um ex-advogado que autointitula juiz-penitente, discorre sobre sua trajetória antes "A Queda" e após "A Queda", fazendo uma análise de si mesmo num boteco de bebum em Amsterdã para uma figura qualquer, a qual não nos é revelada até chegar ao término da história.
O livro não é um romance. Longe disto, é quase um tratado filosófico que perambula pelos principais conceitos da corrente existencialista. Está tudo lá, basta degustar vagarosamente e observar com um olhar atento que você saberá exatamente do que estou falando. Basicamente temos um retrato nu e cru do homem como ele é, de sua espiritualidade e como ele se apresenta ao mundo. Este retrato vai sendo desenhado ao longo da narrativa, ao término nos é oferecido e Clamance indaga quão desgraçada é a sua figura, porém ele coloca: por acaso não parece com você?
Sim, meus caros, Clamance fala de si o tempo inteiro, porém ele também está falando de mim e de você, de todas as pessoas sufocadas por este mundo tenebroso, que são obrigadas a escolher, que são condenadas a serem livres e que ainda precisam prestar contas de seus atos para o universo, que julga cada passo dado e cada decisão tomada. O livro começa com Clamance desmembrando o seu narcisismo e o seu hedonismo, assim como descrevendo fatos que descrevem seu egoísmo e seu egocentrismo.
Entretanto, em frente a todos estes malefícios, Clamance convence a si mesmo que ele nada mais é do que um humanista, um homem de bem, com uma profissão invejável, bonito como só ele e um nato conquistador de amores e paixões. É por trás de sua atitude que conhecemos o quanto Clamance é mesquinho e mesmo arrogante com sua vida perfeita.
Mas, subitamente, algo acontece na vida de Clamance que lhe obrigará a fazer um exame de autoconsciência para assim conhecer a si mesmo. Ocorre, então, a queda que dá nome ao livro: num dia qualquer, ao passar por uma ponte, Clamance observa uma mulher com o claro intuito de cometer suicídio, porém o protagonista finge que não é consigo e segue adiante. Já longe, houve os gritos da pobre mulher, que em tese havia se jogado no rio, porém Clamance não retorna. Estes gritos ecoarão na sua mente por muito tempo, afinal a sua mesquinhez sobrepôs a vida humana, e é a partir deste momento que ocorre a queda: agora ele está cônscio de quanto é pequeno e insignificante em relação ao mundo.
Então Clamance passa a um exame de autoconsciência e, tomado por uma infinita culpa, descobre que a doença do narcisismo é um doença do mundo a qual todos os homens estão sujeitos: primeiro a mim, depois a você. A liberdade, que antes era brindada e comemorada, num exame mais minucioso, começa a ter ares de maldição. Num universo onde a existência precede a essência, o homem só se desenvolve no mundo a partir de seu surgimento. Antes do desenvolvimento, o homem é inteiramente livre, e isto acaba por se tornar angustiante. Neste momento ele passa a escolher, e assim formar a sua essência.
Clamance deixa claro: "No final de toda liberdade, há uma sentença; eis por que toda liberdade é pesada demais". No mundo há uma relação de vaidade tamanha que chega a implicar nas relações mais íntimas da sociedade, de tal modo que quando dizemos "eu te amo" implicitamente estamos questionando ao outro "e você?" para assim satisfazer o nosso ego. Fazemos o bem com o intuito narcista de recebermos algo como bonificação. Não há filatronpia, mas tão somente uma forma de adquirir posição para nos autossatisfazermos.
Ao término, finalmente, nos é apresentado o retrato que Clamance discorre durante o livro, já mencionado num parágrafo anterior: "Quando o retrato está terminado, (...) mostro-o, cheio de desolação: 'Aqui está, aí de mim, o que sou'.(..) Mas, ao mesmo tempo, o retrato que apresento a meus contemporâneos torna-se um espelho". Sim, somos todos Clamance. Ele é você, eu sou ele e você sou eu. O que mais falar desta obra? Apenas que caso não tenha conferido, não perca seu tempo e adquira já um exemplar. Além de curto, é uma ótima experiência. Clamance diz que você passará somente 5 dias em sua companhia, tempo suficiente para ele fazer um exame profundo em sua mente.
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adorei a resenha... o exercício de liberdade por vezes assume uma face questionável, alcançando o inaceitável... pensar, ler, analisar, discutir sobre a atitude em si mesmo requer coragem e gera angústia ao mesmo tempo que promove crescimento.
ResponderExcluirParabéns pela análise!